Realidades contrapostas. Constantes tensões. Embates, embates e mais embates. Esses são alguns sentimentos que ficam depois de assistir Tudo que Aprendemos Juntos, que conta com a atuação de Lázaro Ramos. O ator dá vida a Laerte, um violinista de muito talento que sonha com uma vida pelos palcos, mas se torna professor de música de adolescentes em uma escola de periferia. Lendo essa breve apresentação, somada ao título e ao cartaz de divulgação (aqui), logo imaginamos que iremos assistir a alguma versão nacional de Escritores da Liberdade (Freedom Wrinters, 2007), de Richard LaGravenese. Mas, é justo por esse julgamento que a trama nos surpreende.
Roteiro de mundos insolúveis
O longa de Sérgio Machado é muito mais que uma idealização de um mocinho que vai a uma comunidade e busca solucionar todas as mazelas econômicas, sociais e políticas através da arte. A complexidade de Laerte e, por vezes, até certa antipatia que o personagem nutre no público, colabora para vê-lo muito além de um mocinho. Ele é uma pessoa comum, um músico comum e que enfrenta dificuldades para viver da música e de superar suas próprias falhas.
Logo no início, nos deparamos com um personagem imperfeito. Laerte, em uma tentativa de ingresso na Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP), uma das maiores da América Latina, falha e não consegue. E é partindo de uma falha humana que começamos a acompanhar a carreira de Laerte. Sua humanidade está escrita na sua falta de progressos, em contas acumuladas, na solidão e frustração em que se submerge — fatos que todos têm que lidar algum dia.
No impulso de buscar alternativas para ao menos sobreviver e pagar o aluguel, aceita o cargo de professor de música em uma escola pública, na comunidade de Heliópolis, uma das maiores favelas de São Paulo/SP. A realidade é dura e crua: a escola não tem estrutura e o projeto musical sobrevive por doações de ONGs. Os alunos e alunas vivem em verdadeiro caos e, em sua maioria, também têm que lidar com problemas familiares. Para muitos, estar ali não é mais que uma fuga da realidade, de uma adolescência perdida, de um cotidiano imerso em crime e tráfico.
Laerte não vai à favela trazer a redenção àqueles adolescentes apenas por tocar seu violino. A comunidade também o rejeita ali. Nesses universos que poderiam ser “água e óleo”, o que há é uma coexistência e não uma intenção. É sim uma visão bem sincera e não idealizada do mundo hoje. Assim, ao coexistir o clássico e o popular, é possível ver um através do outro: tanto a água através do óleo, se olhado por cima; quanto o óleo através da água, se olhado por baixo. E será Samuel (Kaique de Jesus), ao apresentar-se como um inesperado talento genuíno, em dessintonia com o ambiente, provará essa capacidade.
Tupi or not tupi, fosse uma manhã de sol a comunidade regia a orquestra
O papel que a música desempenha ao fundo é como se fosse a verdadeira protagonista. Todas as demais personagens são afetadas por ela em algum momento e de alguma forma. Afinal, o que seria a música para cada estrato social? É possível uma correlação dessa percepção entre camadas sociais distintas?
No filme, Lázaro Ramos representa o que a alta cultura entende como arte no que se refere à música. O refinamento, o glamour das grandes orquestras e os instrumentos clássicos acompanham as cenas de Laerte junto a seus amigos músicos e sua vida na cidade. Enquanto isso, a turma de música da comunidade de Heliópolis mostra a inabilidade e a incompreensão perante esse universo clássico, mas que sabe muito de músicas que fazem um bom baile e que refletem ou cantam sua realidade social. Nesta parte, os protagonistas são o funk, rap e hip hop, que acompanham as cenas da periferia.
A interseção dessas duas sinfonias se dá principalmente em dois momentos do filme: o primeiro quando Samuel está tocando violino na laje de seu amigo VR (Elzio Vieira), que chega e emenda um cavaquinho ao clássico; e o segundo quando Laerte reúne sua turma de Heliópolis para tocar no baile de quinze anos da filha do maior traficante, Cleyton (vivido por Criolo). Nessa junção de paradoxos, constrói-se a ideia de que a realidade está errada, mas de um jeito certo; ou ainda pode parecer certa, mas de um jeito errado.
Os diferentes ritmos da Justiça e da verdade
Um ponto de forte reflexão que Tudo que Aprendemos Juntos traz à tona é o conceito de Justiça. A barreira simbólica que a música delimita no filme se expressa, entretanto, de forma bem visível quando a polícia persegue a moto que estão Samuel e VR disparando tiros, enquanto os meninos, que sequer estavam armados, apenas fugiam.
A sequência dessa cena surpreende e é o ponto de virada da trama. É ali que qualquer resquício de visão romântica e idealizada é eliminado e começamos a assistir um documentário sobre a periferia, o tráfico e a polícia, que bem poderia ter sido inspirado em uma notícia de jornal.
Levanta-se, assim, a questão do estereótipo de morador de comunidade, que antevê a pessoa e a enquadra como criminosa, violenta, errada. Os fatos são um e a versão “oficial” da mídia e da polícia é outra. A favela assassinada é o perigo. Já a polícia e a realidade hostil são as vítimas aos olhos de quem escuta música clássica e é incapaz de ouvir o batuque dos escudos da polícia e das balas perdidas.
Numa mistura do grotesco e o sublime, Tudo que Aprendemos Juntos mostra-se uma verdadeira obra de arte delineada entre esses mundos distintos. Um filme que ultrapassa muitas barreiras e que ensina que se deve ouvir o outro seja qual for sua canção.
[authorbox authorid=”7″ title=”Sobre a Autora”] Lauren