“Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta”.
Morte. Vida. Severina. Difícil seria não pensar em João Cabral de Melo Neto e no retrato de vida de um sertanejo sofrido. Poderia dizer ser esta uma jornada de herói de um retirante que, seguindo os rumos do Capibaribe, cão sem plumas, tem sua vida transformada ao se deparar com a fartura que o mangue dá. Mas, não. Esse herói é solitário, cabisbaixo – e nem sempre tem a justiça a seu favor. A arte imita a vida: histórias severinas são tão reais quanto na ficção.
Rosivaldo é filho de Severina, e casado com outra Severina. Severina é casada com Rosivaldo, nora de Severina, mãe de Walmir e de um filho sem identidade que carrega em seu ventre. Esse mundo sertanejo quase desconhecido em sua essência está ali, no Sítio dos Macacos, em Chã Grande, interior de Pernambuco. Sem idealizações. Sem maquiagens. Uma História Severina (Debora Diniz e Eliane Brum, 2005) traz na fotografia o exemplo de uma dura realidade não só de Severinas, mas de Marias, Josefas, Sebastianas, Antônias e tantas outras mulheres brasileiras.
O sertanejo e a sertaneja sofrem não só pela seca e suas consequências, mas também sofrem por sua condição social. Manchetes de jornais anunciam o passo atrás dado pelo Supremo Tribunal Federal sobre a legalização do aborto em casos de anencefalia: estava (re)proibido. Um jogo de disk sim, disk não – só que estar sobre a linha tênue entre vida e morte não é brincadeira.
[…] É que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida
Mais uma vez a caminho da maternidade, Severina decide comprar uma roupa para seu bebê que nascerá prematuramente aos 7 meses. A vendedora oferece diversos modelos, mas Severina logo explica: é só uma roupinha assim, porque ele não vai viver. Apesar do coração do filho bater em seu ventre, a ausência total do encéfalo é sinônimo de morte.
O documentário mostra a peregrinação de Severina, que desde o 4º mês de gestação tenta realizar sua vontade de interromper a gravidez. Na manhã de sua operação, o STF voltou a proibir os hospitais de induzirem o nascimento prematuro de fetos sem cérebro. De quem seria a escolha de levar ou não uma gravidez sem chances de futuro até o fim? De Severina é que não era. Ela não tinha direitos legais sobre o seu corpo, sua saúde ou sua vida.
Paciência. É a palavra mais dita a Severina. Tenha paciência com a Justiça. Tenha paciência com a falta de hospital. Tenha paciência com a falta de leito. Tenha paciência com a falta de médico. Tenha paciência com a conduta ética-profissional. Tenha paciência com sua dor, Severina.
As imagens estão ali para comprovar a realidade ao espectador São Tomé – é preciso ver para crer. A dor foi materializada e sua presença pôde ser registrada: um cinema observativo mostra a existência tal como ela é. Tudo é autoexplicativo – até mesmo a trilha sonora, A Semente da Dor e Sofrimento, composta pelo repentista Mocinha de Passira, canta uma história severina.
A pouca atenção dada à técnica acrescenta o tom de veracidade e indica o caminho que se deve dar atenção. Tá sendo uma história, diz Severina. Uma família abriu as portas de casa e dos corações para contar sobre sua luta e deixar transparecer seus sentimentos. Do amor à dor, da vida à morte: os capítulos daquela história são representados nas xilogravuras de J.Borges.
O sofrimento desenhado nos olhares e a simplicidade explícita nas palavras não são ensaiadas: se a pessoa for humana, ela vai sentir alguma coisa, é o que fala Rosivaldo ao assistir à história de sua família. Esses detalhes se sobrepõem a qualquer enquadramento planejado e fotografia encantadora. As imagens dessa história severina não encantam – não há maquiagens rejuvenescedoras, figurinos bem passados ou cabelos arrumados. Tanto a vida quanto a morte podem parecer desengraçadas.
Em 2012, após 7 anos do caso Severina, o STF por fim decidiu que o aborto de feto sem cérebro não mais seria considerado crime. Mulheres pobres, leigas e subordinadas ao homem-Estado. Mesmo diante da descriminalização do aborto em casos de estupro, gravidez de risco e anencefalia, o processo burocrático parece ser uma barreira indestrutível – paciência, Severinas.
Dados mais recentes do Ministério da Saúde mostram que 67% das mulheres que engravidaram em casos de estupro não conseguiram realizar o aborto legal pelo SUS e recorreram a métodos inseguros. Nem todas entendem que é preciso uma pasta bem grande para guardar todos os papéis, como explica o marido de Severina, e a morte chega na clandestinidade, ou na velhice antes dos trinta.