A jornada de Marinheiro das montanhas (2021) é anterior ao seu próprio enredo e se estende ao tempo de sua projeção. Talvez isso aconteça porque uma travessia transatlântica não é feita em poucos dias, quem dirá em minutos. Karim Aïnouz, diretor de melodramas de personagens femininas, como A vida invisível (2019) e Madame Satã (2002), e do filme de estrada Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009), entrega sua obra mais íntima ao materializar uma memória particular que se ampara na história coletiva.
O filme pode ser recebido como um documentário poético e reflexivo de um homem brasileiro que visita a Argélia para conhecer o lugar de origem de seu pai, figura tanto ausente em sua vida. Entretanto, centrar nessa percepção amenizaria o desejo do diretor-narrador pela escrita de si e o seu interesse por uma história não oficial. É mais instigante pensá-lo como um filme-ensaio que propõe resgatar o passado e, paralelamente, conjecturar o futuro. Karim Aïnouz investe em uma cine-escrita que referencia Chris Marker (Carta da Sibéria, 1957) e Agnès Varda (As praias de Agnès, 2008), todos esses fascinados pelo fazer memorialístico e pelo uso da voz-over que nos conduz a outras temporalidades.
Apesar de parte dessa história dizer respeito a sua própria existência, o diretor respeita os limites e os sentimentos de perda, separação e abandono enquanto tenta descobrir o que lhe pertence nessa jornada de reconciliação com um passado há muito imaginado, mas até então irrealizado. As coordenadas norteadoras da viagem de Karim são sentimentais e a lembrança materna, indissociável dessa elaboração, é quem lhe acolhe. O interesse de sua mãe por algas-marinhas raras é o ponto de inflexão com o filho que imerge microscopicamente em sua ancestralidade.
Iracema é a sua figura feminina e materna referencial, mas também a praia urbana de sua cidade natal, Fortaleza (CE). Esse mesmo nome remete à personagem-título do livro de José de Alencar, cuja história é uma alegoria ao processo de colonização e criação do Brasil. Essas coincidências não são estruturantes, mas estão implícitas na elaboração dessa narrativa de encontros consigo e com o Outro. As fotografias de arquivo contribuem com a forma de Marinheiro das montanhas, apesar de o sustento estar mesmo na fabulação, ato de produzir uma história familiar e coletiva atenta aos rompimentos, às ausências e aos silêncios.
Karim é filho único de pais nascidos em países culturalmente distintos, porém ambos marcados do colonialismo. Os jovens pesquisadores conheceram-se em um período que passaram nos Estados Unidos. Enquanto envolviam-se passional e intelectualmente em terras estrangeiras, seus países de origem viviam a instabilidade política típica do sul global.
No Brasil, um golpe de Estado instaurava uma ditadura militar. Na Argélia, um movimento de libertação declarava a independência do país. A citação de Franz Fanon, retirada de Os condenados da terra, expressa a vontade compartilhada de insubmissão. O oprimido que recusa baixar seu olhar frente ao opressor não mais temerá o seu poder, pois esse não será mais desconhecido. Esse gesto recusa uma verdade imposta, reconhece as diferenças e possibilita a concepção de uma identidade para si.
As imagens, captadas sem a intenção prévia de servir ao texto (semelhante ao que fez em Viajo porque preciso…), servem para desestabilizar as predefinições e expandi-las no encontro com pessoas e espaços, paradoxalmente estranhos e íntimos. Karim executa um exercício de micropercepção ao se aproximar de rostos masculinos de crianças, adultos e anciãos querendo talvez neles se encontrar, como se fossem sua própria imagem refletida no espelho. O corpo vivente e viajante do diretor se transmuta, apesar de raramente se revelar em cena. Essa transformação é testemunhada pelo olhar do outro, cada vez menos curioso ou incomodado com a presença do estrangeiro que imagina uma outra possibilidade de existir. A experiência redefine sua identidade mutante, e ele se torna cada vez menos forasteiro e mais pertencente.
Ao som de Smalltown boy, de Bronski Beat, que canta a partida forçada de um jovem oprimido pelos costumes provincianos e homofóbicos de sua cidade natal, a narrativa se encerra. Assim como o personagem da canção lamenta pela impossibilidade de sua mãe compreender sua necessidade de fuga, Aïnouz despede-se da possibilidade de vida naquele povoado. As imagens da Terra vista do espaço relembram-se de sua condição de estrangeiro e o que fica de Marinheiro das montanhas é a potência da fabulação de um (não)lugar para sua existência se realizar.
Marinheiro das montanhas, de Karim Aïnouz, está disponível na Globoplay.
Este texto é dedicado a Luiz Apolinário, quem sente os filmes com o corpo-coração.