Emicida deixou sua marca na história dos palcos do Theatro Municipal de São Paulo com um show-manifesto articulado ao pensamento do movimento negro. Esse fato poderia ficar restrito à memória das pessoas que vivenciaram o acontecimento ou difuso em vídeos pela internet, mas a realização do documentário AmarElo – É Tudo Pra Ontem cria registros orais e visuais capazes de reverberar a potência em outros tempos e espaços.
AmarElo é feliz ao expandir as possibilidades de um documentário de bastidores e direcionar a atenção para os processos criativos, pensamentos filosóficos, históricos e políticos imbricados. Abrindo e encerrando o documentário com o ditado iorubá que diz que “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”, Emicida revisita a história sob perspectiva do protagonismo negro e edifica uma memória recomposta por afetos.
O presente se constituí do passado e essa compreensão atravessa a narrativa, que se divide em prólogo, atos e um epílogo que retoma a emergência do Brasil de desigualdades sociorraciais na pandemia dos anos 2020. A voz de Emicida narra e expõe fatos com objetividade, mas sem interesse em negar sua afetação, pertencimento e subjetividade. Ao invés da centralidade de sua presença, o narrador-personagem se coloca em relação às temporalidades, espacialidades e outridades.
Ao referenciar artistas e pensadores negros, como Wilson das Neves, Ruth de Souza, Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez, Emicida se posiciona contra o apagamento de movimentos e lutas históricas que possibilitaram sua existência agora e ali, naquele palco. Essa intenção se evidencia quando integrantes do Movimento Negro Unificado – MNU (infelizmente seus nomes não são apresentados) que protestaram em plena ditadura na escadaria do Theatro Municipal se levantam no centro da plateia com punhos cerrados.
Os atos da narrativa, plantar, regar e colher, resgatam os ensinamentos da terra e os expandem para o processo de construção, tanto do documentário quanto da própria identidade trans-histórica. A terra é elemento do quilombo, ideia que direciona ao quilombismo de Abdias Nascimento. O conceito evoca a emancipação política, social, cultural e histórica do povo negro e adquire formas na construção discursiva do documentário.
AmarElo é assertivamente didático e apresenta uma narrativa fortalecedora para construção e reafirmação identitária. Ainda que seja dirigido por Fred Ouro Preto, parceiro de longas datas na realização de videoclipes, e roteirizado por Toni C, realizador do documentário É Tudo Nosso! O Hip-Hop Fazendo História, Emicida não perde a autoria e consolida sua maestria em utilizar a arte como meio de propagar ideais coletivos do movimento negro no Brasil.