Os apreciadores da MPB provavelmente têm Chico Buarque como um dos grandes representantes, e talvez concordem que Cotidiano é uma de suas mais célebres canções. A composição aborda o dia a dia de um casal, em que cada um exerce seu papel: a mulher acorda para cuidar do marido, chama-o para o trabalho. Depois de tomarem o café da manhã, ele segue para um duro dia de trabalho, enquanto ela cuida do lar e o espera ansiosa e alegremente. Esse deveria ser um exemplo de um casal feliz, não é mesmo? Tudo estando naturalmente no seu lugar, certo? Errado! Erradíssimo!
Chico Buarque realizou muitos trabalhos musicais que trataram do período da ditadura militar no Brasil, abordando temas como violência, opressão e também mostrando como as dinâmicas sociais eram influenciadas por esse contexto. É justamente nesse último ponto que se encontra Cotidiano, pois ela não aborda um relacionamento saudável, mas sim a submissão e falta de liberdade que a mulher tem perante o homem.
A menção à música de Chico não está aqui por acaso: “todo dia ela faz tudo sempre igual/me sacode às seis horas da manhã” pode ser a frase que passa pela cabeça logo no início de Acorda, Raimundo… Acorda! O curta dirigido por Alfredo Alves foi realizado durante o período em que trabalhava no Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Econômicas), órgão responsável pela produção, na década de 1990.
Eles lavam, passam e cozinham
Embalado já de início por um samba melancólico, Acorda, Raimundo… retrata um dia na vida de Marta (Eliani Giardini) e Raimundo (Paulo Betti), trabalhadores assalariados que enfrentam dificuldades financeiras para cuidar da família — assim como grande parte das famílias brasileiras. É justamente na naturalização do cotidiano que se desenvolve a principal crítica social: as percepções e relações de gênero.
Desde a sinopse, o senso comum de compreensão dos papéis sociais que se pré-estabelecem e seguem a lógica de uma divisão sexual do trabalho se destaca: “ela está no papel dele” ou “ele acorda no papel dela”. Mas, colocar em destaque esse imaginário coletivo da naturalização da divisão de tarefas por gênero também não foi por acaso. A grande sacada do curta de Alfredo Alves é trazer à reflexão a possibilidade de um universo invertido — e quão “absurdo” ele poderia parecer.
O homem é quem acorda e tem a obrigação de chamar a mulher para não se atrasar para o trabalho. Ele prepara o café, arruma roupas, cuida da casa e das crianças, além de aguentar as violências físicas e simbólicas que sofre em sua própria casa. Enquanto isso, cabe à mulher o serviço que sustenta a família, diversão com as amigas fora de casa e ainda aproveitar o momento para discutir como os homens estão cada vez piores, principalmente depois do “masculinismo”, querendo mais liberdade e outras besteiras. “O que eles deveriam mesmo era se preocupar com roupas para lavar”.
Dos primórdios da humanidade ao século 21
Todas essas questões apontam para um valor incutido na construção das identidades feminina e masculina, que coloca sob o manto natural uma ética de dominação do homem “macho”. Essa divisão sexual parece estar na ordem das coisas. Do lançamento do curta nos anos 1990 até os dias atuais, é possível afirmar sim que muitas coisas mudaram na perspectiva da busca pela igualdade de gênero. É mais comum encontrar mulheres que trabalham fora de casa, mas esse fato não a isentou das obrigações domésticas, de seu “dever” de cuidar da casa e criar os filhos; nem mesmo o de merecerem salários iguais ou superiores a homens que exercem a mesma função dentro de uma mesma empresa.
Por esses e outros motivos (inclusive devido a mentes conservadoras que representam a sociedade brasileira contemporânea no âmbito político-social), não é velho se falar aqui, hoje, de Acorda, Raimundo…. A sombra do conservadorismo e retrocesso ainda continua a pairar e obscurecer compreensões de mundo e, ao fazer pensar que a razão de ser é natural, dará como opção continuar a seguir aquilo que há muito vinha sendo aceito.
Ao invés de “acorda”, diga “basta” para Raimundo.