De um lado, o vestido frondoso cobre uma pele branca sob a temperatura tropical. Do outro, cabelo e costeletas tomam o rosto do homem esguio engomado em tecidos alvos. E as carinhas dos meninos, sentados no chão, se viram ao casal. Todos estão em uma sala ampla, mas há ainda a figura de uma mulher negra, como se fora pintada a supetão, descalça. Este quadro do século 19 – chamado Um Jantar Brasileiro e de autoria de Jean-Baptiste Debret – tem um elemento principal e metafórico: a mesa. É ela que divide o mundo dos que são servidos e dos que vivem a servir.
Em Que Horas Ela Volta (2014), a pintura do mestre francês está numa fotografia na qual aparece uma família rica de São Paulo. E, ao fundo, assim como no quadro do Brasil colonial, a empregada doméstica – Val (Regina Casé) – é registrada como uma sombra, como se fosse engolida pela paisagem. O tempo escorre pelos dedos (são quase 200 anos entre uma obra e outra), mas as estruturas sociais de opressão permanecem.
Val é uma nordestina exilada em “Sum Paulo”. Ela não vê a filha, Jéssica (Camila Márdila), há dez anos. Val trabalha e mora na casa de “seu” José Carlos (Lourenço Mutarelli) e “dona” Bárbara (Karine Teles), família abastada da capital paulista. A presença da personagem de Regina Casé na mansão demonstra um hábito brasileiro já estudado nos livros de sociologia: o mito da cordialidade brasileira. Parece que tudo no país é feito com um sorriso amarelo e um largo aperto de mão, mas é nisso que se escondem os choques de classe. Val – enquanto todos na casa a chamam pelo apelido, ela tem de manter “respeito” com os patrões – é “quase de casa”, apesar de morar no sótão da mansão. Um quartinho sem ventilação e com barulho de motor. O “quartinho de empregada”.
A reviravolta do filme acontece quando Jéssica liga para a mãe e decide arrumar as malas para fazer vestibular de Arquitetura na Universidade de São Paulo (USP). Jéssica, porém, não sabe que morará com os patrões de Val. A menina tem “nariz em pé” e logo impressiona a Fabinho, Zé Carlos e Bárbara pela esperteza: o filme desconstrói o estereótipo de nordestino que deixa a terra natal para tentar emprego no Sudeste. De certa forma, a película é bem embasada no fenômeno migratório pelo qual o Brasil vem passando nos últimos anos: o êxodo Nordeste-Sudeste ainda é realidade, mas são jovens altamente escolarizados que fazem esse deslocamento.
Jéssica se oferece para dormir no quarto de hóspedes da casa e não no “quarto de empregada”; conquista José Carlos e passa a almoçar com ele na mesa (e não na cozinha, como os empregados da casa). Toda essa quebra de paradigmas choca, inicialmente, Val. Há uma cena chave de Que Horas Ela Volta: Val e Jéssica estão na borda da piscina da casa; Jéssica parece querer se jogar na água, mas Val (que nunca se molhara ali) já adianta: se chamarem você, diga que não tem maiô. Depois aparece Fabinho e puxa Jéssica para dentro da piscina. O que poderia ser visto como festa é um transtorno aos olhos da “dona” Bárbara, que diz ter visto um rato na piscina. O rato é a filha da empregada.
A força da educação
O que nem Val nem os patrões esperavam vem no dia do vestibular da USP. O filme usa a estratégia de colocar em paralelo a vida de Fabinho, também vestibulando e candidato a passar na disputada universidade, e a de Jéssica. Mas Fabinho tem um péssimo desempenho na prova, enquanto que a nordestina e filha de empregada doméstica é praticamente aprovada na primeira fase do concurso. O roteiro conduz o espectador a colocar a expectativa da mudança social na vida de Val e, claro, de Jéssica a partir do dispositivo da educação. Vale ressaltar, porém, que Jéssica contribui, no filme, para uma visão da meritocracia: ela desenvolveu o pensamento crítico, como a personagem mesmo diz, porque um professor a havia incentivado. No filme, essa ascensão social é mais uma questão de sorte e está descolada de outros fatores.
A diretora Anna Muylaert estrutura Que Horas Ela Volta – ganhador de prêmios como o Sundance e o Berlinale e possível indicado brasileiro ao Oscar – nos detalhes (do não poder sentar à mesa dos patrões, não poder tomar o sorvete deles, mergulhar na piscina deles; de ser o hóspede que não tem direito a um quarto digno). Porque a indiferença e nossos problemas sociais permanecem no não dito. O discurso de poder dos patrões (sejam eles do tempo colonial, como as figuras de Debret, seja o casal José Carlos e Bárbara) é assimilado, mesmo tacitamente, pelos empregados. Mas Que Horas Ela Volta acredita que essa sociedade quase estamental dos patrões e dos empregados pode tomar outros rumos.
Texto: Vinicius de Brito
Edição: Fernanda Mendonça