Quando do surgimento de um cidadão chamado Quentin Tarantino no início dos anos 1990, inúmeros críticos desavisados e desinformados trataram de atribuir a ele o título de “autor” e de logo encaixá-lo em um nicho específico, criando teorias sobre a chamada “pós-modernidade” no cinema. Estranhamente, ninguém percebeu que o tipo de cinema feito por Tarantino e seus vários seguidores – como seu amigo Robert Rodriguez – nada mais é do que uma variação brutalmente empobrecida da matéria empregada por Jean-Luc Godard desde Acossado (1959) até praticamente os atuais dias do século 21, repleta de referências, citações e o uso incomum da cultura pop ao lado da erudita.
Muito antes de Tarantino e após Godard, Glauber Rocha já praticava um cinema de referências, de citações e com o uso de rituais e canções populares ao lado de música clássica (além da poesia e da política). Em suma uma arte antropofágica, alimentava-se de várias coisas para vomitá-las em seguida. Para alguns, além de haver sido o baluarte e o mentor da geração do chamado Cinema Novo, Glauber ainda teria dado origem ao Cinema Marginal (nosso underground), quando no momento de seu exílio, em 1968, resolveu chamar alguns dos seus conhecidos para realizar Câncer, lançado em 1972, roteirizado, dirigido e montado de maneira anárquica.
Outros ainda dirão que Ozualdo Candeias com seu A margem (1967) foi o precursor dessa geração. Glauber em seguida renegou o Cinema Marginal e o ridicularizou, chamando-o de “udigrudi”. Mas a verdade é que o nosso underground não foi um movimento organizado como o Cinema Novo, com parâmetros próprios e pretensões artísticas. Hoje ele é estudado como se o tivesse sido, quando vários filmes feitos no período correspondente entre o final dos anos 1960 e meados dos 1970 são analisados de modo a compreendê-los dentro de um mesmo invólucro.
Essa geração, cujos grandes nomes eram Andrea Tonacci, Carlos Reichenbach, Júlio Bressane, o citado Ozualdo Candeias e Rogério Sganzerla, além de outros que surgiram na chamada Boca do Lixo em São Paulo, tinha como lema uma das várias frases geniais proferidas pelo protagonista de O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Sganzerla: “Quem não pode fazer nada, avacalha”.
Quando fez O Bandido da Luz Vermelha, Sganzerla era um jovem de 21 anos, crítico de cinema do Estado de São Paulo e devoto de Orson Welles. Seu filme, que pode ser considerado uma obra-prima, revela-se como um retrato de um Brasil disforme, onde reina a impunidade e a injustiça – algo que continua sendo atual. O
personagem principal, levemente inspirado em João Acácio da Rocha, o verdadeiro bandido da Luz Vermelha, é mais um retrato ficcional e não biográfico, onde Sganzerla se faz do mesmo para discursar indiretamente sobre traços filosóficos e niilistas de um país autoritário, submisso a uma Ditadura Militar que limitava os direitos individuais.
Para tanto, Sganzerla constrói o personagem como um homem de múltiplas identidades, que vive se fazendo a mesma pergunta: “Quem sou eu?”. Quem é esse homem? Um justiceiro urbano ou um facínora? Na verdade, ele é um homem dualista, um herói e um monstro, marcado por traços expressionistas.
Sganzerla tentou e conseguiu realizar uma obra popular, apesar de aberta a significações, que se encaixa em inúmeros gêneros que pululam na tela através de um pastiche, como o western, o filme de gângster, o policial, a comédia e até mesmo a ficção científica. Um programa sensacionalista de rádio (da emissora Continental), usado como elemento narrativo, anuncia que se trata de um faroeste do terceiro mundo e não é demais imaginar que Luz é uma espécie de Robin Hood urbano, um bandoleiro moderno que caminha entre a linha tênue da genialidade e da bestialidade – anunciada por letreiros luminosos de um cinema – que toma feições políticas quando se junta a um movimento “terrorista”.
Sganzerla documenta, de forma histriônica, sarcástica e alegórica, a vida da década de 1960, onde o anseio por mudanças – principalmente em 1968, ano chave do século 20 – tornava-se cada vez maior e, se pensarmos que o filme foi realizado pouco antes do AI-5, o chamado golpe dentro do golpe, O Bandido da Luz Vermelha se torna um prenúncio de um período de trevas, de privação da liberdade. Assim, se as imagens do filme ganham um tom explosivo é porque as ideias de seu autor pareciam que iram explodir da tela a qualquer momento.
O Brasil de Sganzerla é o equivalente do Velho Oeste americano retratado pelo western spaghetti (sem leis), onde reinava a injustiça social e política. Luz não é nenhum gênio, mas também não é uma besta. Ele é um cidadão comum, o espírito do underground que ao invés de apenas reclamar resolveu tomar partido da situação e tentar resolvê-la com as próprias mãos (ou melhor: através da câmera que denunciava, criticava e fazia refletir).
Para tanto, em O Bandido da Luz Vermelha, a polícia é vista como burra, corrupta, ineficiente e uma instituição conservadora e reacionária – além de um símbolo dos militares que estavam no poder naquele período – e os políticos como seres ambivalentes, de duas ou mais caras: populistas e inocentes para o povo e pistoleiros para seus mandatários. A burguesia é vista assim como a imaginamos, ou seja, hipócrita e interesseira – a verdadeira responsável pelo Golpe de 1964.
Sganzerla ainda lança mão de recursos narrativos inúmeros para ridicularizar e tratar toda a situação de uma forma anárquica, porém realista, com frases que dizem mais do que qualquer imagem. Ele nos joga na cara o traço de nosso subdesenvolvimento, de nossa miséria, não apenas relativa à fome, mas à miséria cultural e política soltando: “Os personagens não pertencem ao mundo, mas ao terceiro mundo”.
Luz é, como afirmou Inácio Araújo, um mito de um mundo que não mais existe, de um mundo revolucionário, de uma geração que pregava mudanças. Dessa forma, o rompimento desse cinema underground com os representantes do Cinema Novo nada diz politicamente, pois a política está lá em O Bandido da Luz Vermelha, em Bang Bang (1971), de Andrea Tonacci, em Matou a Família e Foi ao Cinema (1969), de Júlio Bressane, em Sem Essa, Aranha (1970), do próprio Sganzerla, e em tantos outros, mas se refere apenas a ideologias distintas. O que importa é a forma popular – própria de uma história em quadrinhos – anárquica, avacalhada, antropofágica, sem a poesia do Cinema Novo, porém com caráter alegórico e filosófico, que Sganzerla confere a O Bandido da Luz Vermelha.
* Análise de O Formalismo publicada originalmente na Revista Prosa nº 1, de setembro de 2011. Foram feitas algumas alterações em relação ao texto original e retirada do obvious.