Uma obra compreendida por seus vestígios, um acontecimento sobre o qual algo se sabe, mas que jamais poderá ser testemunhado. Favela dos Meus Amores (1935, Humberto Mauro) é um fantasma que habita a história do cinema brasileiro, já que desde os anos 1950 é considerado um filme perdido. Restaram apenas recortes de jornais, revistas e fotografias de cenas que provam sua existência.
Esse clássico popular foi visto por milhares de pessoas, lotou salas de cinema por meses e influenciou toda uma cinematografia nacional. A evocação do samba, da favela e das classes populares foi um compromisso com a ideia da cultura nacional-popular articulada no período do Estado Novo. Pela primeira vez o morro foi integrado à narrativa de um filme no Brasil e se tornou paisagem de um romance ficcional.
Favela dos Meus Amores é compreendido como um filme-acontecimento. A crítica não poupou elogios e lhe concedeu o prêmio de melhor produção do ano num concurso do Diário de Notícias do Rio de Janeiro. O Jornal do Brasil noticiou que, com quase todas as sessões lotadas, o entusiasmo do público era tanto que havia aplausos e interações com os intérpretes em tela.
Com falas e músicas sincronizadas, o filme contou com o envolvimento de intelectuais e participação de cantores, como Ary Barroso, Nássara, Custodio Mesquita e Silvio Caldas, este último também em cena (carrossel abaixo). Na ocasião da estreia, um crítico enfatizou a “alegria e felicidade de compreender o idioma que falam, a ausência completa de letreiros, a música bem nossa, os intérpretes nossos e bons, panoramas lindíssimos do Rio, um trabalho que já orgulha o Brasil”.
A intenção da narrativa combinou elementos do melodrama, das chanchadas (gênero que traz humor burlesco com cenas musicais) e da valorização do nacional-popular. Na história, dois homens retornam de Paris e abrem um cabaré numa favela no Rio de Janeiro, uma atração para turistas e para a cidade. Um dos personagens malandros (Jaime Costa) se apaixona por Rosinha (Carmen Santos), professora bondosa que alfabetiza crianças.
O projeto do filme ainda pretendia se fazer realista, pelo menos no quesito locação, já que parte das gravações foram realizadas no Morro da Providência, a primeira favela carioca. Entretanto, inserido em seu tempo, deduz-se que a representação fosse permeada por estereótipos, exotismos e racismos, assim como outras produções realizadas em consonância com a política cultural vigente. O projeto nacional-popular propunha a exaltação de uma cultura popular, de massa, com o intuito de fortalecer o sentimento de nação, necessário para manutenção da ordem nacional em regimes populistas e autoritários.
Favela dos Meus Amores: “o fantasma de um clássico”
O historiador Marcos Napolitano explica, a partir de análises de reminiscências do filme, que Favela dos Meus Amores foi o marco de incorporação do morro à paisagem cultural brasileira. Se por um lado ele estabeleceu um parâmetro para “filmusicais” e chanchadas, por outro também soube explorar a tensão dramática e certo discurso sobre o social, tradição esta que chegou até Nelson Pereira dos Santos, precursor do Cinema Novo com Rio, 40 graus (1955) e Rio, Zona Norte (1957).
Essas são nuances da obra que apontam sua complexidade e explicam as diferentes perspectivas de recepção de um público varido. Intelectuais de esquerda celebraram a aparição relevante de classes populares, enquanto críticos conservadores viram a favela e os personagens negros como “pitorescos” e “folclóricos”. Já o grande público, de classes populares, foi movido pelo interesse de ver imagens “reais” do cotidiano no morro.
Três nomes centrais estão envolvidos na realização do filme: o diretor Humberto Mauro, o roteirista Henrique Ponguetti (que se autointitulou também como diretor artístico) e a atriz e produtora Carmen Santos. Essa última teve a importante função de criar a estratégia de produção e divulgação orientada por um pensamento industrial baseado no mercado cinematográfico estadunidense. A trajetória de Carmen Santos e sua aproximação com Humberto Mauro, desde o Ciclo de Cataguases, é assunto do sexto episódio do podcast do Assiste Brasil, que desenvolve uma minissérie dedicada às Pioneiras do Cinema Brasileiro Atrás das Câmeras.
A deterioração do filme se deu pela ação do tempo, pela falta de preservação e, fatalmente, pela autocombustão da película em nitrato de celulose. O resgate de vestígios e conservação dos materiais sobreviventes tornaram possível a inscrição do filme na história do cinema brasileiro. Esse trabalho, é importante destacar, seria impossível sem a Cinemateca Brasileira. Favela dos Meus Amores não propôs ser irretocável, nem está isento a críticas, mas certamente apontou possibilidades para um cinema brasileiro de grande alcance.
Referências
FREIRE, Rafael; FREIRE, Leticia. As favelas cariocas nas chanchadas: de berço do samba a problema público. Revista Comunicação Mídia Consumo, São Paulo, v. 15, n. 43, p. 68-93, 2018.
NAPOLITANO, Marcos. O fantasma de um clássico: recepção e reminiscências de Favela dos Meus Amores (H. Mauro, 1935). Significação: Revista de Cultura Audiovisual, [S. l.], v. 36, n. 32, p. 137-157, 2009.
REMINISCÊNCIAS de “Favela dos Meus Amores”- Marcos Napolitano: https://youtu.be/xo8f7_jd66k