Adoro filmes brasileiros. Já foi tempo em que eu cruzava a cidade pra assistir filme brasileiro. Detalhe no cruzar a cidade. É literalmente cruzá-la.
É que moro na zona norte e os cinemas cult do Rio estão na zona sul, eixo rico da cidade. Filme brasileiro não-comercial, simplesmente por sê-lo, entra no bolo “cult”.
E olha que nem moro em bairro periférico. Apesar de levar uma hora pra chegar no cinema, pegava apenas um ônibus. Tem quem leve a duração de um filme pra chegar no cinema.
Ah, e outra: você faz o quê às 14h? Trabalha, né. Sabe que horas passa o filme brasileiro? Adivinha.
Por que só rico faz cinema alternativo no Brasil?
Assistir cinema, sobretudo cinema brasileiro, na segunda maior metrópole do país, não é lá tão acessível, geograficamente falando. Imagina nos outros cantos do Brasil.
E o muro que citei nem é o maior. Tem outro que grita, mas parece que os cineastas tão de fone pra não ouvir: o social. Qual a raiz disso?
Fazer cinema no Brasil é um baita privilégio. Pra começar: estudar cinema, fora da faculdade pública, é caro. Na faculdade pública, a concorrência é gigante (no Rio, é tipo Direito. Sem caô) e a tendência são salas com gente que fez pré-vestibular pra passar. Quem pôde pagar pré-vestibular é, sem dúvida, privilegiado.
Depois vem o fazer cinema. Equipamentos são caríssimos. Se você não tem dinheiro pra comprá-los, se inscreve num edital público. Mas editais pra iniciantes costumar pagar R$ 20 mil. Risos. Editais com valores decentes requerem portfólio bacanudo. Como tu vai ganhar esse edital se nunca conseguiu filmar pra criar portfólio?
É mó correria, queridas leitoras e leitores. Pra fazer cinema sem dinheiro no Brasil, vai ter que trabalhar dobrado. Em todos os sentidos da palavra.
O resultado disso são filmes com um olhar característico de determinado grupo social: o privilegiado.
O cinema brasileiro não é feito pelo povo brasileiro
E quando digo “povo”, me refiro à classe popular.
Os realizadores mais prestigiados do cinema alternativo brasileiro não conseguem e estão longe de conseguir cativar o grande público.
O negro é, normalmente, o traficante. Quando não, o miserável. O sertanejo, igualmente miserável. O índio, objeto de estudo antropológico.
Repare: é importante usar o cinema como ferramenta para expor os males sociais, mas para quem vive diariamente esses problemas, assistir sua miséria não é lá tão cativante.
Além disso, é preciso muita responsabilidade pra mostrar as mazelas sociais. Houve muitos que viram Capitão Nascimento como herói a partir do Tropa de Elite ou Zé Pequeno como exemplo em Cidade de Deus.
Será que não existe beleza na classe popular? Pra falar de favela, só pode ser sobre tráfico? Não dá pro índio fazer seu próprio filme, à sua maneira e linguagem? A única cultura do sertanejo é a seca?
Cinema Novo e Cinema Marginal não atingiram quem estava à margem
Tenho a impressão de que, nessa época, fazia-se filme sobre o povo, mas para a elite. Filmes que tratavam o povo como objeto de estudo dos grandes intelectuais. E essa prática ecoa até hoje.
O cinema marginal foi feito por quem nunca esteve à margem. Aliás, os cineastas do período têm vergonha dessa denominação. Se autodenominam “cineastas de invenção”.
O Cinema Novo não foge disso. Homens brancos e ricos que monopolizaram o mercado e, por isso, criaram rixa com o cinema marginal. Uma batalha de egos pra definir quem era “mais cinema”.
Sem contar com a linguagem. A rebeldia contra o televisivo os fez entrar num poço de experimentação que, arrisco dizer, nem eles mesmos compreendiam.
Já dizia Bezerra da Silva:
É o que os intelectuais hoje fazem com a gente. Vão pra escola, aprendem laracutom, bangandom e essas coisas lá. Aí chega com você e fala de você o que quer e você não entende nada. Aí a gente fica ‘sim, senhor, doutor. Tá bem, doutor. Sim, senhor, doutor’ e a gente não sabe nem o que é.
O resultado foi um povo que teve sua imagem exotizada, folclorizada e, sobretudo, explorada.
Homens dirigiram 80,7% dos filmes brasileiros lançados em 2016
E olha que foi a menor porcentagem da história.
Se mulher não faz cinema, dificilmente ela se verá representada no cinema. Um filme famoso que fala sobre uma mãe, aliás, tem a mãe interpretada por um homem.
A figura feminina, em boa parte das vezes, não reflete as mazelas femininas urgentes. Boa parte das mulheres que consegue espaço no cinema goza de seus privilégios de classe e raça. Correndo por fora, Adélia Sampaio, a primeira cineasta negra do país, só foi reconhecida agora.
A personagem feminina do cinema nacional ano passado era uma mulher branca, rica e intelectual. Há discussões muito pertinentes sobre a solidão da mulher nesse filme, mas a que mulher ele atinge? Diria que uma pequena parcela.
Sem contar que é mais uma história de mulher contada por um homem, e por mais talentoso que seja esse homem, isso é algo simbólico.
O cinema alternativo brasileiro é fantástico, sim. Filmes que denunciam as mazelas da nossa sociedade são extremamente relevantes e estudar o desenvolvimento do nosso cinema é fundamental. Mas quais as perspectivas pro futuro?
Que tal abrir espaço para diretoras e diretores que fazem parte das minorias falarem sobre ficção científica? Eles não são obrigados a falarem só de tragédia.
Que tal diretoras e diretores que vivem as mazelas realizarem os trabalhos sobre os seus?
Que tal buscar uma linguagem própria, exorcizando-se de alguns vícios eurocentristas?
Que tal deixar realizadoras falarem sobre si e para as suas?
Que tal democratizar o acesso ao ensino do cinema através de escolas populares de cinema?
Bezerra completou o que ele disse (e citei lá em cima) fazendo uma exaltação à gíria.
A gíria pode ser um ponto de fuga pro cinema popular.
O povo não é apenas objeto de estudo do nosso cinema. Ele também pode ser agente.
* Artigo de Victor Hugo Liporage