Fazer um balanço do ano do cinema brasileiro em 2020 pode soar desanimador. Além do desmonte do setor proferido pela atual gestão do governo, a pandemia de Covid-19 agravou a situação de profissionais do audiovisual. Salas de cinema fechadas, produções interrompidas, lançamentos prejudicados, perdas inestimáveis de artistas queridos.
Apesar das circunstâncias adversas, grandes realizações do cinema brasileiro chegaram às telas de nossas casas. Alguns dos principais festivais de cinema, que são as maiores vitrines para curtas-metragens, realizaram versões online e possibilitaram o acesso a produções que muitas vezes ficam restritas a esse circuito. Se por um lado a disponibilidade digital eliminou as distâncias geográficas, por outro a demanda por tempo excessivo de telas e dispersão podem ter prejudicado a recepção dos filmes.
Nós, espectadoras e espectadores, também passamos por um processo de readaptação e ressignificamos a experiência coletiva de participar de festivais. Aqui, compartilho minhas escolhas de curtas-metragens do ano que merecem ser vistos e revistos. Não desejo definir esta seleção como os melhores de 2020, mas sim como alguns dos mais marcantes. Os curtas selecionados estrearam nas edições online dos festivais de cinema, conquistaram reconhecimento do público e da crítica e também estão entre as escolhas do ano do Assiste Brasil.
O Que Há Em Ti, de Carlos Adriano (SP)
O documentário experimental tem como mote as palavras proferidas pelo imigrante Haitano (cujo nome ainda é desconhecido) para Bolsonaro, em frente ao Palácio da Alvorada, no início deste ano: “você não é presidente mais”. O Que Há Em Ti referencia o Haiti, país onde o exército brasileiro atuou na controversa “missão de paz” e executou uma chacina na maior favela da capital, Porto Príncipe, conhecida como Cité Soleil. O documentário apresenta imagens aterradoras do recente passado haitiano que se conecta ao Brasil dos anos 2020. “O Haiti é aqui”, como canta Caetano Veloso na canção citada por Carlos Adriano. Disponível gratuitamente até esta terça (29), às 16h, no Cine Cipó.
Inabitável, de Matheus Farias e Enock Carvalho (PE)
Marilene (Luciana Souza) está à procura de sua filha, uma mulher trans, preta e moradora da periferia, que não voltou para casa depois de uma festa. Os diretores apresentam um conto fantástico e afrofuturista para imaginar outros destinos possíveis para o desaparecimento da jovem que reside no país que é líder mundial em assassinatos de transexuais e travestis. O curta expõe violências de gênero estruturais e dispensa a (re)produção de imagens hostis, optando reconduzir a narrativa pela via do afeto. Inabitável foi o curta mais premiado do ano e único brasileiro selecionado para a Mostra Competitiva do Festival de Sundance 2021.
A Morte Branca do Feiticeiro Negro, de Rodrigo Ribeiro (SC)
Um filme ensaio que resgata e reverbera vozes, corpos, olhares e memórias da história escravista brasileira. Imagens fantasmagóricas e ruídos angustiantes intensificam o grito do passado – que se ouve no presente – contra o silenciamento, negação da subjetividade e invisibilização das identidades afrodiaspóricas.
República, de Grace Passô (SP)
Realizado em casa durante a quarentena do primeiro semestre de 2020, o curta é dirigido, roteirizado e protagonizado por Grace Passô. O que é acordar em um país tomado pela violência? País este, diga-se, que se define como república constitucional, democrático, mas foi (e ainda é) sonhado por poucos e para poucos. A ficção se desenvolve em um clima distópico, um feito e tanto se contextualizada na realidade em que foi concebida: em plena pandemia de um vírus mortal, num governo orientado pela necropolítica. O curta está disponível online no Programa Convida do IMS.
Perifericu, de Nay Mendl, Vita Pereira, Rosa Caldeira e Stheffany Fernanda (SP)
Feito coletivamente, com direção compartilhada, o curta explora a diversidade de experiências e individualidades de suas protagonistas, construídas a partir de múltiplos olhares, porém coerentes. A narrativa mescla depoimentos que extrapolam o universo ficcional, reforçados pelas imagens de arquivo que criam uma linha tênue entre relato e encenação. Conciliando slam, vogue e louvor gospel no Brasil neopentecostal, Perifericu cruza as missões da vida adulta enfrentadas por Denise (Ingrid Martins), mulher lésbica que acabou de ser demitida, e por Luz (Vita Pereira), travesti que trabalha vendendo bolos feitos por sua mãe. As amigas enfrentam individualmente os preconceitos, dificuldades e dilemas, mas encontram na relação um lugar de aconchego e fortalecimento.