Nos anos 1960 até meados da década seguinte, Glauber Rocha liderou no Brasil o movimento do Cinema Novo, corrente artística que se contrapôs ao modelo narrativo importado dos EUA e se inspirou nos movimentos da nouvelle vague francesa e do neorrealismo Italiano. Em 1970, quando já era um cineasta reconhecido internacionalmente por Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, Rocha viajou até a Espanha para gravar seu quinto longa-metragem: Cabeças Cortadas.
A redescoberta da passagem do cineasta por terras espanholas aconteceu por intermédio do pesquisador Fermín Sales Segarra. Licenciado em Comunicação Audiovisual pela Universidade Jaume I de Castelló, realizou seu primeiro filme no mestrado em Teoria e Prática do Documentário Criativo pela Universidade Autónoma de Barcelona (UAB). Sua dissertação resultou no curta El Viaje Glauber (2014), que refaz os caminhos do cineasta brasileiro na Espanha durante a ditadura do general Francisco Franco, período conhecido como franquismo.
Com Cabeças Cortadas, Rocha pretendia retratar a história de decadência, poder e delírio protagonizada por um ditador latino-americano. O curta de Fermín parte do fracasso de recepção do filme para reivindicar um marco político e cinematográfico. O pesquisador e documentarista fala mais sobre seu processo de pesquisa e realização na entrevista concedida ao Assiste Brasil.
Fermín, como aconteceu o despertar de seu interesse pelo cineasta brasileiro Glauber Rocha?
Descobri o Glauber aos dezoito anos numa viagem a Barcelona. No Museu de Arte Contemporânea de Barcelona, durante uma exibição chamada Estão Preparados Para a Televisão?, projetaram numa tela gigante um programa inteiro de Abertura, que contava com a participação de Glauber Rocha e era exibido na TV Tupi durante os anos de redemocratização do Brasil. Impactou-me muito ver aquela pessoa, assim, em primeiro plano, discursando e falando fervorosamente sobre as coisas que gostava e também as que não gostava, de seus costumes culturais… Essa fascinação me fez querer descobrir mais. Foi assim que o conheci como um cineasta de primeira ordem mundial.
Foi essa fascinação que fez surgir a ideia inicial do que viria a se tornar o seu primeiro documentário?
A ideia original nasceu de uma base obsessiva, partindo de meu interesse pelo tema. Interessa-me o cinema espanhol, o cinema da modernidade ou o grande cinema das periferias, e conhecendo o Glauber descobri que ele já havia filmado na Espanha. Na época, seu filme teve um sucesso estranho quanto à produção e resultado final. Saber disso me motivou a querer ir a fundo nesse pensamento. Parecia-me uma história muito interessante e totalmente desconhecida, a qual poderia ser transformada em uma peça documental.
Como foi o trajeto da ideia à produção final de El Viaje Glauber?
Quando estava cursando o mestrado, pensei no projeto que desde o primeiro momento consistia nisso: Glauber Rocha filmou na Espanha nos anos 1970 e seria bom revisar o porquê, as causas do fato dessa filmagem em plena ditadura franquista, já que é uma coisa complexa ou estranha. Esse era um bom ponto de partida. Daquele instante em diante, o projeto foi tomando forma, passando por fases de produção e se desenvolvendo. Mais companheiros se agregaram ao meu trabalho e, finalmente, em um pitching de seleção de projetos para televisão pública catalã e espanhola, tive minha ideia escolhida para ser produzida e financiada.
Houve mudanças e adaptações nesse processo?
Da ideia original à ideia final, realmente mudou bastante. Vendemos o projeto no início como uma viagem à memória. Seria explícito: queríamos ir para um lugar e para outro, como um road movie, buscando as pegadas de Glauber. No teaser que apresentamos já tínhamos incluído duas cenas, uma da praia e outra filmada em Sant Pere de Rodes, mesmas locações utilizadas por Glauber em 1970. Foi um grande processo, com muitas crises e discussões, positivas e negativas, e também muitas mudanças. O que parecia ser um filme fácil, tornou-se um filme difícil e depois fácil de novo. Foram muitos altos e baixos, como todas as produções, suponho.
Sobre a correspondência, as cartas trocadas entre o diretor e o produtor, como você as descobriu e decidiu utilizá-las na montagem?
Eu sabia da existência das cartas, mas as tinha rejeitado desde o início porque não achava importantes. Nunca estiveram presentes no processo de construção do roteiro. No entanto, elas acabaram sendo introduzidas na montagem como voz de Glauber. Com elas, pude refletir sobre o que pensava o diretor sobre seu próprio filme. Essa questão nos direcionou à conclusão de que as cartas poderiam ser válidas e ajudariam a complementar o diário de filmagem. Rapidamente a Filmoteca Valenciana concedeu o acesso à nossa equipe. Esse detalhe realmente deu um peso fundamental, principalmente ao final do filme.
No final do filme, numa das correspondências, o Rocha diz que Cabeças Cortadas foi uma biografia audiovisual do inconsciente de Franco. Você acha que essa era a ideia inicial?
Bom, ele dá esta visão dupla que também reforça a mitologia e a simbologia que o filme pretende passar. Acho que Glauber não pensava em Franco quando escrevia o roteiro. Aquela era simplesmente uma continuação de Terra em Transe noutro contexto mais europeu, mais “cavaleirístico”, que também trazia uma referência nacional. Mas acredito também que essa comparação com o Franco é totalmente legítima.
Qual é a sensação de colher os resultados do curta-metragem com a passagem por festivais de diferentes países e culturas?
Fico muito contente com o reconhecimento que teve o filme. Passamos na seleção oficial do Festival de Málaga, o mais prestigioso do estado, dedicado exclusivamente ao cinema espanhol. Passamos por outros festivais de curta-metragem, como Corto y Creo, no Santander, e o Zinebi, em Bilbao. Esteve presente ainda no Festival de Sitges, numa seção paralela dedicada a novos criadores, além da estreia internacional no Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte, o FestCurtasBH.
Assista na íntegra ao documentário El Viaje Glauber (sem legendas), de Fermín Sales Segarra:
Entrevista realizada por Mar Navarro Llombart, de Açores/Portugal.