A cada dia que passa, a palavra privilégio tem sido utilizada para ilustrar os lugares sociais estabelecidos desde então; poder viver em um mundo onde não há preocupação com a etnia das referências, é um privilégio. Ser universitária negra e estudar ao longo de quatro anos e não ter nenhuma artista, técnica, intelectual negra que tenha construído narrativas e pensamento, é um prejuízo.
E, de prejuízo em prejuízo, deixamos de ser roteiristas e protagonistas de nossas próprias histórias e quando isso acontece, os antagonistas e personagens secundários, roubam a trama.
Adélia Sampaio, considerada a primeira cineasta negra a dirigir um longa-metragem, foi apagada pelas histórias; as contadas pelos professores, pelos críticos, pelos cinéfilos, pelos artistas da época, pelos pesquisadores e por vários estudantes de cinema que nunca sentiram falta de outras referências. Afinal, sendo o cinema uma área dominada por homens brancos de classe média, o que uma mulher negra, empobrecida, que dirigiu quatro curtas e um longa-metragem, a partir dos anos 70, antes mesmo do cinema de retomada em 1995, poderia nos ensinar? A quem ela poderia inspirar?
Aos poucos, a pergunta que abre esse texto, feita há 11 anos durante o curso de Cinema, encontra várias respostas, mas todas elas convergem: o racismo manifesto em vários setores da sociedade, que desde 1500 mantém as estruturas tais quais sempre foram, apagou as contribuições de mulheres negras para o cinema brasileiro.
Nós, frutos da diáspora africana, precisamos constantemente reescrever a nossa história, apagada pelo racismo e sepultada no silêncio do privilégio branco. Vivemos e construímos um novo tempo e que alegria conhecer/reconhecer, mesmo que tardiamente Adélia Sampaio.
Neste mês de março, Adélia foi celebrada ao batizar uma categoria do Festival Palmares de Cinema, o FepalCine, que ocorreu na zona Leste de São Paulo. A categoria “Adélia Sampaio” foi pensada para tirar da invisibilidade o rico trabalho de jovens cineastas negras.
Aos 72 anos, ela conta um pouco sobre sua trajetória no universo do audiovisual.
De que forma você ingressou no universo cinematográfico?
Iniciei em 1969, em uma distribuidora chamada DIFILM, criada pela galera do cinema novo.
Ainda que tenha feito uma busca na internet não encontrei muitas informações sobre seus curtas. Quantos foram?
Ao todo foram quatro. O primeiro foi “Denúncia Vazia”, baseado num fato verídico sobre um casal de velhinhos que sem condições de pagar o aluguel, fazem um pacto e cometem suicídio. Não foi para nenhum festival, os tempos eram outros, e protestar com imagem era complexo. O segundo curta foi “Agora um Deus dança em mim!” e conta a história de uma jovem que estuda balé clássico por dez anos e descobre que não existe mercado de dança no Brasil. Esse participou de um festival e ganhou o prêmio. O terceiro, “Adulto não brinca” mostra a intolerância do adulto para com a criança. Rodei os três com a mesma equipe, com a ajuda do Eduardo Leon, professor da USP, na montagem. Todos foram rodados na periferia de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. Por último, filmei “Na poeira das ruas” sobre pessoas que moram na rua, no centro da cidade, seus trajes, sua alegria, sua comida e móveis embaixo dos viadutos.
Você foi uma das primeiras mulheres a dirigir um longa-metragem antes do cinema de retomada, além disso, você teve a possibilidade de passar por várias etapas do audiovisual; roteiro, produção, assistência e maquiagem. A migração para direção foi natural ou encontrou muita resistência? Quais foram as maiores dificuldades?
De acordo com uma pesquisadora e historiadora, sou a primeira mulher afrodescendente a dirigir uma longa-metragem. Tudo que sei aprendi assistindo. Fui diretora de produção de muitos longas-metragens com diversos diretores, essa foi a minha escola. Aprendi sobre montagem com meu amigo Professor Leone, fotografia com meu amigo José Medeiros, roteiro com o já falecido diretor Marcos Farias. Cinema é, sem dúvida, uma arte elitista, aí chega uma preta, filha de empregada doméstica e diz que vai chegar à direção, claro que foi difícil! Até porque me dividia entre fazer cinema e criar meus dois filhos.
Quais eram ou são suas referências cinematográficas?
Jaques Tati, Chaplin, Bergman, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Nelson Pereira dos Santos. Filmes de Anquito e Oscarito.
Em seu longa, Amor Maldito, 1984, você traz a temática homossexual onde Fernanda (Monique Lafond) é acuada em um tribunal por todos os valores machista e sexistas da época. Como foi a repercussão do filme tendo os anos 80 como pano de fundo?
Foi brabo! (sic) Já para começar a Embrafilme foi categórica em me dizer que esta temática era absurda, por isso não me daria financiamento. O filme foi rodado em sistema de cooperativa, todos receberam apenas uma ajuda de custo e atores como Emiliano Queiroz, Nildo Parente e Neusa Amaral abriram mão do pró-labore, ou seja, compraram a minha briga (no meu caminho de cinema fiz grandes amigos e aliados). Tivemos uma ajuda financeira de uma engenheira de Furnas, Edy Santos que apostou no projeto. Terminamos o filme e na hora da exibição nenhum dono de cinema queria o filme. Até que o dono do Cine Paulista me propõe transvestir a divulgação da porta como se fosse um filme pornô. Pensei, discuti com a galera e topamos. Deu certo.
Nós estamos em um momento do audiovisual onde as reivindicações entorno das representações e representatividades estão a todo vapor. Não é fácil encontrar seu nome na história do cinema como uma das primeiras cineastas negras a dirigir um longa-metragem de ficção. O que você pensa sobre isso?
Com preta e pobre é assim! Como o fato de não ter os negativos dos meus curtas que foram armazenados no MAM (Museu de Arte Moderna) e sumiram. Não sofro por isso, a vida segue. Quem sabe um dia aparece?
As questões raciais apareceram em suas produções de alguma forma?
Não, meu foco sempre foi a relação humana. O curta “Na poeira das ruas” aborda o que hoje é real: uma população de excluídos negros e brancos. Fui produtora de um longa chamado “Parceiros da Aventura” que foi realizado com 80% de atores negros.
Você tem acompanhado o cenário cinematográfico atual? Arriscaria tecer algumas palavras sobre?
Sim, sou a velha senhora de 72 anos que observa sempre o país e o cinema. Vejo que tem galera nova, ávida por dizer e descobrir o que um dia esconderam e com alegria, sem ranço. Até porque basta uma ideia na cabeça e um celular na mão que já temos um filme.
Qual foi o papel da mulher na “indústria” cinematográfica e qual é hoje?
Sempre estamos lutando para nos firmar, a exemplo de Lucy Barreto, Nazaré Conceição Sena, Tizuca e muitas e se você observar verá que pós Collor foram as mulheres que retomaram o cinema: Carla Camurati com Carlota Joaquina, Norma Bengell com Pagú e Pequeno Dicionário Amoroso.
Você ainda trabalha com audiovisual? Quais foram os caminhos percorridos no universo cinematográfico pós anos 80?
Foram duros e difíceis. Migrei para área de vídeo, fiz programas de revistas eletrônicas com patrocínio TV BAND e CNT (programas A CARA DO RIO – RIO QUE TE QUERO RIO). Fiz com Carlos Tourinho uma série para TVE de programas sobre talentos brasileiros. Dirigi um documentário sobre Carlos Scliar e depois dirigi a reconstituição da plenária na Câmara em Brasília no dia da votação do AI5, o dia que não existiu.
Quem foi Adélia Sampaio? Quem é Hoje Adélia Sampaio?
Adélia é um ser preocupado com o afeto, gentileza, carinho. É alguém que repudia sempre o preconceito e qualquer tipo de violência. Concluo hoje com filhos criados e netos, que não vim a esta vida a passeio, vim para me inquietar sempre. Tenho novos projetos e estou à procura de parceiros porque os que eu juntei nesta vida ou foram para o andar de cima ou já não têm vigor, mas eu tenho.
Artigo de Juliana Gonçalves e Renata Martins, publicado originalmente no Blogueiras Negras e cedido gentilmente pelas autoras ao Assiste Brasil.