Em 5 março de 1986 a polícia chegou ao baile de música negra no famoso Quarentão, em Ceilândia, cidade satélite de Brasília, com um objetivo: impor respeito pelo uso da força contra o público negro. Na porta do salão a ordem era clara: branco sai, preto fica para apanhar. O resultado foi trágico: mortes, amputações e vidas podadas pela violência policial.
Anos mais tarde, ainda em Brasília, um cineasta contaria essa história naquele que é um dos mais interessantes filmes nacionais dos últimos anos. Branco Sai, Preto Fica, de Adirley Queirós, caminha sobre a linha da ficção científica e do documentário ao retratar a realidade daqueles que apanharam no baile fatídico no Quarentão.
Temos assim um documentário forte, que explora o destino de dois dançarinos que estavam no baile. Eram adolescentes alegres, que preparavam passos inventivos para se apresentar na hora da festa. Agora, no filme, um está na cadeira de rodas e o outro usando uma perna mecânica. E além disso, uma ficção corajosa, que explora a imagem, a iluminação e a audácia de seu realizador para enriquecer a narrativa.
Com uma fotografia linda, que se prova paradoxal filmando o caos futurista de uma Brasília meio apocalíptica, o longa aposta na coragem de seu realizador para encantar e emocionar o público. Tratando da questão racial, Adirley acaba construindo uma narrativa carregada de tensão, com cenas longas do drama diário dos que sobrevivem à violência. A cena de Marquim do Tropa a cadeira de rodas, descendo do carro e subindo no elevador que dá acesso à casa, vai ficar na memória por um bom tempo, tamanha força narrativa que aqueles vários segundos de dificuldade proporcionam.
Mas os enquadramentos não tem na beleza sua única qualidade. A posição da câmera é sempre narrativa, oferendo na tela um auxilio à história que está sendo contada. Se o longa é sobre a marginalização criada pela diferença de tratamento dado aos negros em Brasília, sua fotografia trata de ampliar esse sentimento de que os personagens estão à margem, sempre presos do lado de fora:
Trata-se também, de um filme ambicioso e ao mesmo tempo humilde em suas próprias limitações financeiras que são, acertadamente, transformadas em técnicas narrativas. Um exemplo disso é a máquina do tempo usada em cenas tensas e engraçadas: um container iluminado com luzes de festa e nada mais. Essa simplicidade se converte, na tela, em ambição narrativa, já que a própria máquina do tempo é também a imagem da história que é contada no longa: simples mas incrivelmente corajosa. Como bem disse José Geraldo Couto:
Cheia de fios soltos e remendadas com fita isolante, as engenhocas improvisadas pelos personagens para lançar bombas e viajar no tempo são não apenas um manifesto estético-político de afirmação do imaginário popular, como também, de certo modo, o retrato de um país provisório, feito nas coxas, o país-gambiarra chamado Brasil.
O filme porém, não foi feito no improviso. É fruto de uma equação muito bem calculada entre documentário, ficção, estudo de personagem e deboche. Sem deixar por um segundo sequer de lado o seu tema social e político. Além de ser, a bem da verdade, um filme que veio para incomodar. Se o objetivo é escancarar a realidade racial marginalizada, a forma correta é mesmo causando o desconforto necessário para que a mensagem correta penetre na consciência do público. Daí a importância das incomodativas cenas demoradas de Marquim entrando em seu estúdio, descendo lentamente as escadas com o auxílio do elevador.
Se para quem assiste ao filme, esperar alguns segundos observado a agonizante rotina de locomoção de um deficiente físico é angustiante, é possível imaginar o quão mais angustiante é para quem vive na pele essa demora diária? Nisso, ou seja, em incomodar, em tirar o público da zona de conforto — nem que seja apenas pelo tempo de projeção do longa — Branco Sai, Preto fica alcança um sucesso referencial.
Crítica assinada por Elvis Picolotto.