Uma cena não resume tudo, mas abre caminho para o baião. Imagine a imagem clichê do riacho com lama petrificada no meio do sertão. Como clichê, comunica o lugar de referência para muitos de nós sobre uma região inteira do Brasil. Mas um filme é aclamado quando reconstrói o discurso e, justamente, sugere novas imagens. É o que faz Boi neon, que abriu na última sexta-feira (6) a mostra competitiva de longas do oitavo ano do Festival Janela Internacional de Cinema do Recife. A imagem do mesmo riacho seco é agora revisitada com uma chuva colorida de retalhos desovados pela indústria têxtil. Dali saíram saias, shorts, blusas e um vaqueiro costureiro.
O filme está esperto para o lugar que o sertão e o sertanejo passaram a ser, onde convivem a tradição com pezinho nos séculos 17 e 18 da vaquejada e a produção industrial. E não é de agora: em 2013, cidades como Caruaru, Toritama e Santa Cruz do Capibaribe, todas no interior de Pernambuco, já acumulavam oito mil empreendimentos ligados à fabricação de roupas. À época, era o segundo polo têxtil do país, título conseguido após uma década de investimentos. A vaquejada, por outro lado, também se transforma. A prática secular deixa de ser um mero divertimento entre fazendeiros que criam o gado solto no mato para ser uma atividade amplamente capitalista, de criação pecuária e espetacularização, com circuito de shows e patrocínio de empresas multinacionais.
Esse espaço em mudança ganha voz com Iremar (Juliano Cazarré), Galega (Maeve Jinkings), Zé (Carlos Pessoa) e Cacá (Aline Santana), que vivem de criar gado. No roteiro, Cacá pode ser comparada à personagem Jéssica (Camila Márdila), de Que horas ela volta?, uma vez que funciona como um catalisador e questionador da posição social de cada um, inclusive dela mesma. O filme de Gabriel Mascaro prefere mostrá-la sempre perto dos animais e longe do ambiente doméstico. A menina sonha em conhecer o pai e é filha de Galega, que a criou junto aos vaqueiros e ao curral. O maior sonho de Cacá, porém, é comprar um cavalo, principalmente em uma realidade onde os bois são derrubados e comem terra enquanto os equinos reinam. Mas é claro que Cacá não está longe do contexto em que está inserida e reproduz alguns estigmas (em uma cena, ela chama a mãe de puta por comprar uma “calcinha sexy”).
Na outra ponta está Iremar, cujo papel no desenrolar da trama desperta surpresa, pela tentativa de fugir do lugar comum na representação. Uma cena que alinhava isso acontece entre o vaqueiro, sentado ao volante do caminhão, e Galega, posicionada de joelhos e de bruços para Iremar. Enquanto o público espera que os dois se beijem, a sequência seguinte é de Iremar tirando as medidas do corpo da mulher para o que virá a ser a nova roupa dela. Em dias de vaquejada, Galega faz danças sensuais vestida com as criações de Yremar (enquanto costureiro, o vaqueiro assume nome artístico) e uma máscara com forma de cavalo. É uma provocação ao papel da mulher na sociedade e uma relação de humanização-animalização no filme.
A figura do vaqueiro não esbarra em Iremar e no parceiro Zé. Mascaro põe em cena um novo cabra: Júnior (Vinicius de Oliveira), que usa presilha para dar conta do cabelão, alisado com chapinha e esmero nas manhãs. O personagem aparece para substituir Zé, que roubara o sêmen de um cavalo reprodutor valioso em um leilão de vaquejada.
Sexo como chancela
Talvez o pecado do filme seja a forma como a sexualidade do cabra Iremar é “chancelada”. Isso aparece em uma das últimas sequências da película, em que ele e Geise (Samya de Lavor) transam. Os dois se conhecem aparentemente por acaso, quando a vendedora Geise oferece cosméticos para o tratador de boi. É como se essa posição desconstruída do papel do vaqueiro (que assina roupas brilhosas e decotadas para Galega, que não se masturba ao ver uma mulher nua na revista pornô, que trabalha para comprar uma máquina de costura Overlock) tivesse que gritar a heterossexualidade a partir, unicamente, do sexo.
O mesmo ocorre ao longo do filme quando a sexualidade de Iremar é questionada pelo parceiro e cuidador de bois Zé. Em alguns momentos, Iremar retoma o preconceito com a mesma moeda e chama o amigo de “frango”, um vocativo pejorativo que significa homossexual para os nordestinos e com uso similar a “viado”. O argumento do diretor pode ser o de que os diálogos não se desenvolvem a parte de uma realidade, e sim estão colados em um contexto de desigualdes e de representações de gênero e sexo. Esse contexto gritante em que os personagens se inserem é marcado em todo o filme, também, pela escolha de músicas e letras. Exemplo: a cena em que Iremar costura enquanto ouve Meu vaqueiro, meu peão (Eu estou sempre onde ele está/ Forró, vaquejada, qualquer lugar/ Eu vou seguindo o meu peão), cuja temática reforça a paixão entre uma mulher e um vaqueiro, de certa forma submissa.
Boi neon é o grande vencedor do Festival do Rio, ganhador do Prêmio Especial do Júri do Festival Internacional de Cinema de Veneza e condecorado com menção honrosa no Festival Internacional de Toronto. É sobre o sertão, a vaquejada, a moda, as relações de animalização e humanização (como na última cena da película, em que Iremar imita o mugido do boi e os olha com o mesmo olhar meticuloso com que medira a cintura de Galega dias atrás) e, sobretudo, sobre o preenchimento de subjetividades nesse campo árido e vasto. Valeu, boi!
Realizador
O nome por trás da direção e do roteiro de Boi neon é Gabriel Mascaro, um dos cineastas mais engajados da produção audiovisual em Pernambuco. Mascaro tem uma trajetória, no cinema, muito ligada a temas sociais e é marcante o gosto pelo gênero do documentário. A exemplo de KFZ-1348 (2009), sobre a história de um fusca que percorre o Brasil desde 1965, passa por oito proprietários e vira sucata no Recife; e Um Lugar ao Sol (também lançado em 2009), que discute o universo de moradores de coberturas em cidades como Recife, Rio de Janeiro e São Paulo.
Antes de Boi neon, Mascaro guiou o longa Ventos de agosto, sobre uma relação de amor em crise sob o pano de fundo do vento e da maresia e de um processo de migração ou retomada cidade grande-vila. O longa tem como protagonistas Dandara de Morais e Geová Manoel dos Santos e foi premiado, entre outros, no Festival de Brasília, no Janela Internacional de Cinema do Recife, no Festival de Cinema Luso-Brasileiro e no Festival Internacional de Filmes Independentes de Istambul.
* Artigo assinado pelo jornalista e pesquisador Vinícius Brito